Um Estado nacional, enquanto ente político-institucional, caracteriza-se pela vigência de uma norma jurídica abstrata e universal, a regular e proteger a vida de todos os que ostentam a mesma nacionalidade ou vivem sobre o mesmo território. Assim deveria ser o Brasil. O que vale para mim deveria valer também para você, leitor, e para todos os demais, sem quaisquer distinções.
Não fui eu quem desenvolvi esse raciocínio. Foram muitos e muitos filósofos e pensadores que dedicaram suas vidas a desenhar um modelo que hoje é predominante em matéria de organização política no mundo. A ideia de país (nação), repito, como deveria ser o Brasil, não nasceu de maneira espontânea ou por acaso, mas é fruto, sim, de complexa e demorada construção filosófica, cuja origem remonta às antigas Grécia e Roma.
Desconhecer ou minimizar a complexidade do tema faz nascer o risco de se deturpar a própria concepção de Estado. E é justamente isso, uma deturpação da concepção de Estado, o que o filósofo italiano (e meu xará) Giorgio Agamben chama de "estado de exceção". Para Agamben, estado de exceção é um Estado parcial, cuja lei é propositalmente estabelecida para não ser aplicada de maneira equânime a todos. No estado de exceção, um grupo, uma categoria ou mesmo uma etnia inteira, muito embora permaneça submissa aos rigores da lei, é totalmente excluída da proteção dela.
Esses excluídos, chamados de "homo sacers", são homens e mulheres cativos, úteis, mas que, por não estarem protegidos pela lei, são livremente "matáveis" de acordo com a simples vontade dos demais.
É esse justamente o caso do Brasil, um estado de exceção que faz questão de manter o favelado como seu "homo sacer", mantido para servir de mascote, para entreter, compor e tocar as músicas que nos identificam e, sobretudo, para lavar, passar e fazer aquilo que uma minoria não se dá ao trabalho. Não à toa, certa feita, com notável lucidez, disse o santa-mariense José Mariano Beltrame que "a sociedade quer a favela para ter cozinheira, faxineira e lavadeira".
Em caso de turbulência ou estiagem, sacrificam-se alguns desses "homo sacers" como forma de oferenda. É isso o que faz o Estado brasileiro há muito tempo e é isso o que fez o governo federal ao decretar intervenção na segurança pública do Estado do Rio.
O mesmo governo federal que não interviu quando seis dos sete membros do Tribunal de Contas daquele Estado foram afastados por corrupção, ou quando os três últimos ex-governadores foram presos também por corrupção, interviu agora para apontar fuzis e canhões para as cabeças de milhares de pretos pobres e favelados.
A intervenção não tem por objetivo conter criminalidade ou garantir segurança a ninguém, mas apenas oferecer pretos pobres em sacrifício para o deleite de alguns semideuses que conduzem a opinião pública e influenciam votos. É assim desde sempre. Quem não sabe disso?